I
Não é preciso ser um
pedagogo, professor ou especialista em educação para, hoje, alvorecer do séc.
XXI, ser capaz de reconhecer um novo tipo de analfabeto funcional[1] que
tem surgido no mundo dito globalizado e, mais especificamente, como mera
consequência de um subdesenvolvimento histórico, de maneira mais abrangente,
também em países da América do sul, como o Brasil.
Nesse último caso, basta
fazer parte de qualquer rede social da internet ou assistir vídeos no youtube
que, rapidamente, descobre-se uma quantidade incomensurável deles. E isso
devido a dois óbvios, mas nem por isso menos trágicos ou complexos motivos:
1- O primeiro porque, contrariando-se o princípio e/ou método
filosófico (irônico e maiêutico) Socrático (sei apenas que nada sei),
substanciados apenas pela doxa (opinião, aquilo que Platão, discípulo de
Sócrates, chamava de realidade sensível, caverna ou mundo das sombras e das
inverdades), eles, os novos analfabetos funcionais, acreditam-se também
entendedores de tudo, de qualquer assunto: deste futebol, passando por dicas de
saúde e beleza, e até mesmo sobre o como ficar rico em no máximo sete ou dez
dias (ainda que tendo-se nascido um miserável);
2- O segundo, porque acreditam também que ninguém mais precisa
aprender a pensar para viver, buscando-se, por exemplo, fazer pesquisas sérias
e sistemáticas que levam anos; e nem tampouco estudar ou ler livros que não
sejam de autoajuda ou ficção. Para eles, os analfabetos funcionais de hoje,
contrariando a lógica de todas as epistemologias críticas do conhecimento,
basta apenas se encher de pensamentos já pensados por outros, oriundos de
fontes da própria internet, e depois reproduzi-los ou propagá-los, feito papagaios
ou máquinas de ensinar, com um novo rótulo ou título apelativo, por meio de
frases ditas virais e/ou de um “produto” digital qualquer.
II
Dentro desse contexto,
obviamente, surge também um fato novo em relação aos antigos que caracteriza os
novos analfabetos funcionais: se no século XX eles eram entendidos e definidos
por especialistas como aqueles que não sabiam bem escrever; e que também não
entendiam o que liam ou, entendendo o que liam, não conseguiam se expressar
graficamente e fazerem relações com a realidade, os de hoje, por outro lado,
“são aqueles que, ao parcamente lerem, ou ao precariamente decodificarem o que
leem, além de não saberem se expressar oral e/ou graficamente, por falta de uma
sólida formação cultural, não conseguem também, de forma crítica ou criativa,
fazerem relações do que leem ou das informações que recebem com a realidade
local e, ao mesmo tempo, também global, isto é:
1- Com a árvore e a
floresta;
2- Com as realidades micro
e macrossociais existentes, esboçando-se, por exemplo, uma visão crítica e/ou
um juízo de valor.
Nesse sentido, pode-se e
deve-se também dizer que, hoje, alvorecer do séc. XXI, um dito indivíduo
considerado analfabeto funcional é não mais somente aquele que possuía ou
possui dificuldades de leitura e escrita, ou até mesmo aquele dito ser com
pouco estudo, que não possuía dito nível de escolaridade ou diplomas, mas sim
todo aquele que, diplomado ou não, não consegue ler o mundo e, que, portanto,
faz-se também incapaz de transformar-se e/ou de lutar para poder transformá-lo
em um lugar mais humano, justo, equitativo, participativo, fraterno, solidário,
respeitoso das diferenças e ético de se viver.
III
Numa outra via, um ser
considerado analfabeto funcional nos dias de hoje, tempo de globalização; tempo
de altas tecnologias da informação; tempo de redes sociais e de amplos espaços
virtuais de interação social e/ou ditas possibilidades incomensuráveis de
ensino-aprendizagem:
1- É também todo aquele
que, dotado do automatismo para buscar sempre se encher de informação,
confundindo-a com sabedoria, não se fez ou não se faz também capaz de fazer-se
autônomo intelectualmente, isto é, de fazer-se capaz de aprender a pensar de
forma crítica e autônoma;
2- É também todo aquele que
sobrevive em estado de conformidade ou passividade intelectual,
por fazer-se cheio de novas informações, alienadamente acreditando-se, por esse
motivo, estar também hiperconsciente ou sábio.
II - A VERDADEIRA EDUCAÇÃO
A verdadeira educação,
ao contrário do que muitos hoje acreditam, não é um processo heterônomo, ou
seja, não é aquilo que, vindo de fora, como força externa, sob a forma de
saberes enlatados (frases soltas de redes sociais, vídeos da internet, clichês,
etc.), formata, compacta ou programa o ser para ter essa ou aquela visão de
mundo; formata, compacta ou programa o ser para emitir essa ou aquela opinião;
formata, compacta ou programa o ser para agir dessa ou daquela maneira,
formando-se, por esta via, uma massa de seres programáveis ou programados, isto
é, que apenas reproduzem “saberes” por outros já pensados.
A verdadeira Educação
não é também, nesse sentido, um mero processo de formação cultural, dito de
socialização. Ou seja, não é um processo de enchimento do ser com preceitos
ditos éticos e/ou morais, etc. que, como se fossem camisas de força ideológicas
coletivas, formatam os indivíduos ou grupos de indivíduos para pensarem ou
agirem desse ou daquele jeito.
II.1 - A educação para
além dos preceitos de Immanuel Kant
I
A educação, nos dias de
hoje, século XXI, está e deve estar muito além dos ditos “quatro passos
educacionais” outrora definidos por Immanuel Kant, em especial na sua obra
intitulada “Sobre
Pedagogia”[2], publicada
postumamente.
Para aqueles (a) que não
conhecem o pensamento educacional kantiano, aqui vai uma rápida síntese.
1- “Disciplina”: Segundo
Kant, é onde a animalidade do homem é reprimida para que o seu caráter possa
vir a ser desenvolvido;
2- Cultura: é o que,
segundo Kant, torna o ser humano um ser dito culto, depois de disciplinado,
para que ele possa ter possibilidades múltiplas e para muitos fins;
3- Civilidade: Para Kant, é
aquilo que seria uma espécie de cultura dita mais refinada, isto é, que preza
os ditos bons costumes, as convenções, as cerimônias sociais, etc. (Ex:
gentileza, prudência, ser um dito bom cidadão, etc.);
4- Moralização: é, segundo
Kant, a última etapa do processo dito formativo; é aquilo que, para ele, seria
a dita etapa mais importante da educação, porque o agir humano deve estar
fundado em imperativos categóricos, ou seja, o ser deve pensar por si, mas
sendo capaz de escolher os ditos bons fins para todos os seus atos,
evitando-se, assim, agir buscando fins pessoais ou que atentem contra a
dignidade humana.
Em síntese, para Kant, a
educação é aquilo que estabelece um padrão ético ou moral-cultural (dito
universal), estruturado sob a forma de imperativos categóricos (ações com fins
em si mesmas). O indivíduo, segundo Kant, deve seguir valores universais. Ser um
ser dito “autônomo”, dentro da perspectiva Kantiana, dentro desse contexto,
seria o mesmo que internalizar imperativos categóricos e ser também capaz de
agir, com bases neles, diferentemente das crianças, sem ninguém precisar mandar.
II.2 – A educação, muito
além dos preceitos de Kant, como um processo dialógico-dialético de luta pela
conquista da autonomia ou da emancipação intelectual
A educação, nos dias de
hoje, diferentemente do que pensou Kant e muitos outros formalistas que o
seguiram, é e deve ser entendida como aquilo que acontece quando o ser – sob
processos dialógicos e/ou dialéticos, ocorridos estes em espaços-tempos
existenciais concretos de ensino-aprendizagem, exercendo a sua liberdade para
pensar, tem a possibilidade, fazendo uso do pensamento crítico, de desenvolver
a sua autonomia intelectual, de construir a sua própria visão de mundo, e,
portanto, também de fazer-se capaz de refletir sobre o sentido das suas
próprias condutas ética e/ou morais.
Pode-se com propriedade
afirmar, nesse sentido, que um verdadeiro processo educacional, muito além de
um mero processo de formação Kantiano (cultural/ética/moral), é aquilo que pode
levar uma vida, e não necessariamente o tempo de uma sistemática formação ou
socialização escolar ou universitária, porque visa fazer com que o sujeito
possa ser capaz de pensar ou refletir para agir, acompanhando sempre as
dinâmicas sociais, e não de se tornar um dito ser “formado ou formatado”.
Ou seja, a educação,
hoje, sec. XXI, deve ser entendida como um caminho dialógico e dialético,
vivido e problematizado, de transição da heteronomia (espaço-tempo em que não
se pensa de forma autônoma; e que apenas se obedece às regras de forma
irreflexiva ou se segue o pensamento de um grupo, etc.) para a, diferentemente
daquela postulada por Kant, verdadeira “autonomia”: espaço-tempo em que o ser,
fazendo uso da própria capacidade para pensar ou refletir, em processo
individual ou coletivo-dialógico, passa a desenvolver o gosto pelo aprender a
pensar ou por agir e/ou tomar decisões refletidas, levando-se em consideração
não apenas o aspecto formal ou formalista da ação (imperativos categóricos),
mas também e impreterivelmente o concreto ou existencial.
[1] O conceito de analfabetismo funcional foi criado na década de 30, nos Estados Unidos, e posteriormente passou a ser utilizado pela UNESCO para se referir às pessoas que, apesar de saberem ler e escrever formalmente, por exemplo, não conseguem interpretar o que leem e nem tampouco compor e/ou redigir corretamente qualquer tipo de texto. Segundo a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, o analfabetismo funcional é considerado um problema significativo em todos os países industrializados ou em desenvolvimento. Mais de um terço da população adulta brasileira é considerada analfabeta funcional. Fonte: MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete analfabetismo funcional. Dicionário Interativo da Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001.
[2] Kant, Immanuel (1724 -1804). Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. 2ª Ed. Piracicaba: Editora Unimep, 1999.